Pesquisa científica muda realidade na aldeia
Os sateré-mawé da Terra Indígena Andirá-Marau, no oeste do Amazonas, estão modificando sua trajetória a partir dos resultados de pesquisas científicas desenvolvidas em parceria entre pesquisadores e membros das comunidades indígenas, como professores e estudantes. Símbolo mais recente dessa retomada, o projeto “Revitalização da língua e das práticas culturais Sateré-Mawé” é a primeira oportunidade de geração de emprego e renda entre jovens do povo, mas surge, principalmente, como iniciativa a favor da reafirmação da identidade étnica.
O projeto está em discussão durante o encontro de avaliação do primeiro ano de atividade, que acontece até sábado (8), na aldeia Umirituba, na região do município de Barreirinha (a 372 quilômetros de Manaus). Tuxauas, professores e estudantes das dez aldeias onde estão sendo realizadas as oficinas de artes previstas pelo projeto participam da avaliação.
Desde junho de 2006, o projeto “Revitalização da língua e das práticas culturais Sateré-Mawé” é desenvolvido pela Organização dos Professores Indígenas Sateré-Mawé dos rios Andirá e Waikurapá (Opisma), com apoio do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), envolvendo a população de cinquenta aldeias dos rio Andirá, Marau (no município de Maués, a 267 km) e Waikurapá (em Parintins, a 369 km), correspondentes à TI Andirá-Marau.
A Opisma identificou os anciões da tribo que ainda detinham os conhecimentos tradicionais e os transformou em professores de oficinas de arte: redes, cerâmica, tecelagem e história mitológica; cada uma delas coordenada por um professor indígena, responsável por mobilizar os jovens à participação. “É um trabalho para proteger e fortalecer o povo sateré-mawé”, diz o tuxaua-geral da tribo, Júlio Miquiles.
O projeto começou a ser pensado durante o desenvolvimento das pesquisas “Elaboração de uma gramática Sateré-Mawé” e “Elaboração de um dicionário Sateré-Mawé”, com apoio do Programa Jovem Cientista Amazônica (JCA) e do Programa Integrado de Pesquisa e Inovação Tecnológica (PIPT), da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam), respectivamente. Mais recentemente, o dicionário e a gramática monolíngue foram publicados pela Editora da Universidade Federal do Amazonas (Edua), pelo Programa de Apoio à Publicação – Publica Amazonas, também da Fapeam.
“Ao produzir material pedagógico para que os professores tivessem o mínimo de conhecimento lingüístico para a alfabetização na língua nativa, nos demos conta de que as práticas culturais estavam se perdendo”, explica Dulce Franceschini, lingüista, pesquisadora responsável pela condução dos projetos financiados pela Fapeam e assessora dos indígenas no projeto atual.
Os professores começaram a perceber que não praticavam mais os rituais do passado, o que dificultava o ensino da língua. “Como a gente pode ensinar que há animais da terra e animais da água sem saber o sentido dessa diferença. Esse questionamento começou a ficar muito forte entre os professores indígenas”, explica José de Oliveira, coordenador-geral da Opisma e um dos gerenciados do projeto.
Revitalizar as práticas culturais enquanto prática pedagógica passou a ser prioridade para os sateré. "Tudo está relacionado à nossa capacidade de falar sobre quem somos, conhecer nossa cultura é ser sateré. A gente até conhecia, mas não sabia do início ao fim como os jovens agora estão aprendendo”, diz Leonardo Miquiles, professor, que também coordena o projeto.
A atuação dos próprios indígenas na gerência do projeto de revitalização é conseqüência no processo de retomada de organização dos saterés à frente de suas iniciativas. Tanto Leonardo Miquiles quanto José de Oliveira foram bolsistas JCA “na pesquisa da gramática”, primeiro passo para a autonomia. “A gente começou como bolsistas, aprendendo a coletar dados em campo e aos poucos foi entendendo como fazer”, diz José de Oliveira.
A expectativa é que outros professores indígenas assumam papéis de gerenciadores de projetos. “As oficinas de artes do projeto de revitalização funcionam em dez aldeias, sendo cada uma delas coordenada por um professor indígena da comunidade. Assim, ele aprende aos poucos como gerenciar”, explica Leonardo.
Jovens construindo o futuro
Os jovens atenderam ao chamado da tribo e lotam as oficinas de artes para revitalizar as práticas culturais. Cada oficina oferece 12 vagas a crianças, adolescentes e jovens sateré-mawé, preenchidas a partir da divisão elaborada pela organização. “As aldeias que ficam na cabeceira no rio tiveram mais vagas, porque sempre foram desprestigiadas quanto à realização de projetos. É preferível realizar atividades em aldeias de fácil acesso”, explica Denise de Souza Carneiro, assessora da Opisma.
Três oficinas para cada arte (rede, tecelagem, cerâmica e história) foram realizadas no primeiro ano do projeto. A cada uma delas, os coordenadores e assessores, como Denise, sobem os rios percorrendo as aldeias da boca à cabeceira para mobilizar a comunidade. “Levamos até um mês viajando de rabeta para chegar à cabeceira, onde os rios têm dois metros de largura e a densidade da floresta produz uma noite permanente”, diz a pesquisadora.
Zezinho de Araújo Beltrão, 20, morador da Vila Miquiles, no rio Andirá, se diz está entusiasmado com oportunidade de direcionar sua curiosidade contribuindo para o resgate da oralidade na tribo, na oficina de história mitológica. “Eu queria saber como a gente tinha nascido, saber com as histórias e falar para a tribo. Mas estava esperando uma oportunidade para me mostrar. Tenho até o pensamento de ser um professor de história”, diz.
Para Nonato Lopes Trindade, professor de história mitológica na aldeia Simão, onde Zezinho estuda, todos os alunos demonstram ter potencial. “O mais importante é que eles compreendem o sentido que a história quer comunicar. Elas orientam, falam sobre organização, reunião, delicadeza, tudo que é importante. A oralidade é um modo de captar na memória”, explica.
A própria transmissão oral de conhecimento obedece a regras tradicionais dos clãs. “Todas as histórias que passo aos meus alunos são segundo a ordem da minha mãe, aquelas que ela falou que podia transmitir”, explica Nonato.
Meninas e mulheres saterés também reivindicaram o direito de participar. Assim como fazem o artesanato com matéria-prima retirada da floresta, elas agora tecem redes como obras de arte. “As meninas querem trabalhar e agora a gente pode vender as redes pros sateré mesmo ou pros brancos”, explica Andreza Miquiles, professora da oficina de rede.
Para ela, a participação da filha, Betiane Miquiles, 15, na oficina é uma conquista. “Eu aprendi a fazer redes com a minha mãe, mas deixamos porque paramos de plantar algodão e tudo se perdeu. Agora, a gente vai plantar algodão e trabalhar com as redes de novo”, diz Andeza.
Betiane vê no aprendizado uma oportunidade de trabalho, compartilhando da expectativa dos coordenadores de que a práticas culturais também se consilidem enquanto alternativas econômicas. “A gente pode vender as redes como artesanato e ainda mantém a cultura sateré-mawé”, diz.
O resultado do esforço foi visível na exposição realizada pela Opisma durante o encontro de avaliação na aldeia. Alunos e professores apresentaram suas redes, cerâmicas e tecelagem a todo o povo presente no encontro. A oralidade, por sua natureza, se fazia notar a cada diálogo na aldeia. “Ainda há muito o que fazer, ainda há muito a descobrir sobre a nossa própria cultura”, diz José de Oliveira.
A diretora técnico-científica da Fapeam, Elisabeth Brocki, participou da abertura do encontro. “É muito importante perceber como o apoio financeiro da Fapeam a dois projetos anteriores a este, motivaram a realização de um novo grande projeto”, disse ao conselho de tuxauas da tribo.
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Texto e fotos: Michelle Portela – Agência Fapeam