Viagem pelo Alto Rio Negro através do Tucum


Um retorno ao passado buscando compreender determinada sociedade a partir do desenvolvimento atual de sua cultura. São esses os passos que a pesquisadora Otacila Lemos Barreto – Pirõ Diho, em sua língua materna – buscou cumprir para averiguar a possibilidade da produção da fibra de tucum vir a ser uma alternativa econômica viável para os povos indígenas do Alto Rio Negro. A pesquisa foi realizada para compor sua dissertação de mestrado para o Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura da Amazônia (PPGSCA) da Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

Para realização do trabalho de campo, ela visitou três comunidades do Rio Tiquié – Maracajá, Pari-Cachoeira e São Pedro – onde colheu depoimentos, dialogou com líderes sobre o trabalho de produção artística e sobre o espaço ocupado por essas comunidades. Pertencente à etnia Tukano e natural da região, a pesquisadora diz que se sentiu muito à vontade para realizar sua pesquisa em um local tão familiar. “Por ter nascido naquele universo, em nenhum momento senti dificuldades de fazer um estudo de forma séria, como cronista, historiadora e autora da pesquisa”, revela.

Para compreensão das relações étnicas e econômicas que perpassam a produção de tucum na região, Pirõ Diho realizou uma investigação etnográfica com os povos indígenas sobre a importância do tucum e sobre as formas de organização social e comercial desses povos.

As principais dificuldades da pesquisa, segundo ela, foram as “intempéries climáticas”, a baixa qualidade do sistema de transporte fluvial para viagens de longa distância e a falta de recursos suficientes para mão-de-obra necessária para se chegar ao local das pesquisas.

“As comunidades pesquisadas ficam muito distantes e por vezes as cachoeiras dificultaram a passagem das navegações pelo rio. Como o combustível é muito caro na região e a logística para viajar por lá é muito complicada, a ajuda da Fapeam (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas) e do próprio PPGSCA, através do  convênio firmado com a Universidade Federal de Pernambuco – UFP, foi fundamental”, afirma a pesquisadora.

O interesse da pesquisadora na temática deve-se muito em parte pela sua história de vida. “Nos colégios onde estudei, em Pari-Cachoeira e em São Gabriel da Cachoeira, fazíamos artesanato de tucum, e anos depois percebi como a maioria das pessoas se admira com o cuidado na feitura dos utensílios indígenas oriundos do tucum. Então, resolvi abordar esse tema no meu trabalho de mestrado”, conta.

A difusão da produção de tucum se deu através do sistema de trocas matrimoniais entre diferentes etnias da região, antes do contato com a sociedade ocidental. “A tradição exogâmica exigia que os homens buscassem suas mulheres fora do seu povo de outras etnias que falam línguas diferentes e com isso os tipos de artesanato, antes exclusivos de cada etnia, passaram a se difundir entre elas”, explica Pirõ Diho.

Segundo ela, a produção de tucum destinava-se para as mais diversas atividades e não apenas para ornamentação. “Na produção do tucum está implícita a concepção mítica de que a arte indígena sobrepuja a idéia simplificada de estética, ela vai muito além, traz em seus fios trançados valores e tradições que transcendem à simples ornamentação. Essa concepção mítica dá um importante significado para a divisão social do trabalho, alcançando as formas de ver e ler o mundo”, pondera Pirõ Diho.

Ela lamenta que, em razão do processo histórico que envolveu essas populações na lógica de mercado capitalista, muito desses significados perdeu-se ou foi subjugado às lógicas do mercado.

Para a Pirõ Diho, a produção de tucum nos moldes capitalistas, onde a confecção das pessoas visa apenas a troca por outros produtos industrializados, trouxe a especialização no trabalho (sobretudo feminina) aflorando na década de 1980, o que se tornou a marca de transformação na organização familiar e na forma da organização social do movimento indígena, para defender e garantir seus direitos e interesses.

 “As mulheres foram treinadas pelas freiras salesianas para trabalhar com a fibra de tucum, buscando um incremento da produção artesanal voltada para o mercado, então em expansão. Com o passar do tempo, os próprios indígenas tentaram, individual ou coletivamente, ter o controle dessa produção”, revela a pesquisadora.
 
Segundo a ela, a produção da fibra de tucum como alternativa econômica dos povos indígenas das etnias Tukano, Tuyuka e Dessana ganha atualmente força e visibilidade dentro do conjunto de lutas pelos direitos da população indígena.

 “Para que as populações indígenas consigam integrar suas vidas econômicas é preciso criar uma nova via de desenvolvimento que possa dar resposta às suas necessidades e eu acredito que a melhor resposta é a busca por uma economia solidária, que pode vir a permitir a sustentatibilidade das populações envolvidas na produção do tucum”, aponta Pirõ Diho.

Mas a pesquisadora compreende que tal solução enfrentaria muitas dificuldades. Segundo ela, a solidariedade é um campo de disputa de muitos atores sociais, e o resultado disso pode acabar apenas no discurso e nas boas intenções. “Sei das dificuldades que envolvem uma produção pensada dessa forma, mas a economia solidária faz parte desse povo e dos movimentos sociais mais amplos, de uma intensa corrente de luta pela reintegração da economia nas relações sociais. Se por um lado ela não é a solução de todos os problemas dessas populações, por outro é um passo importante nessa direção”, conclui Pirõ Diho.

Hemanuel Jhosé – Agência Fapeam

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