Cartografia revela conflitos de interesses na Amazônia
Cada vez que se pensa na construção de grandes projetos de infra-estrutura na Amazônia (portos, rodovias, hidrovias etc.), na perspectiva de que trarão benefícios à sociedade, a grande questão que surge é até que ponto os direitos das populações tradicionais são levados em consideração. Como forma de provocar a contraposição desses direitos frente à retórica das “vantagens circunstanciais” que os projetos engendram, pesquisadores estão desenvolvendo uma nova cartografia da Amazônia, cuja finalidade é dar maior visibilidade aos conflitos entre os movimentos sociais e os interesses do Estado na construção de obras de grande porte na região.
Essa nova cartografia vai reunir os resultados da pesquisa “Processos de Territorialização, Conflitos e Movimentos Sociais na Amazônia”, coordenada pelo professor Alfredo Wagner Berno de Almeida, com apoio do Programa de Desenvolvimento Regional (DCR) da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam). O que os pesquisadores propõem é uma análise contínua e disciplinada da percepção dos direitos – especialmente dos agentes sociais atingidos frente aos interesses dos grandes projetos de infra-estrutura – permite a construção de uma ação pedagógica sistemática capaz de fortalecer uma nova consciência ambiental.
“É fazer com que o problema ambiental se torne uma questão social, possibilitando uma mobilização local continuada, que dinamize os movimentos e consolide os mecanismos de regulação e de intervenção do Estado”, explica Almeida, acrescentando que a pesquisa está sendo desenvolvida no Programa de Mestrado em Sociedade e Cultura da Amazônia, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Segundo ele, para construir esta nova cartografia, é importante conhecer e compreender as transformações das últimas três décadas ocorridas no seio do movimento social na área rural da Amazônia e que se afirmam com força nesse início de século, tendo na “identidade” seu principal referencial.
“A mobilização deixou de ser individualizada e passou a ser coletiva, se consolidando fora dos marcos tradicionais do controle clientelístico e tendo nos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais uma de suas expressões maiores”, afirma Almeida. Para ele, as formas de associação e luta escapam do sentido estrito de uma organização sindical, incorporando fatores étnicos e critérios ecológicos e de gênero que concorrem para relativizar divisões político-administrativas. “Isto numa região de mais de cinco milhões de quilômetros quadrados que constituem a Amazônia Brasileira”, observa.
O professor destaca que foi o próprio Estado quem permitiu a evolução da organização social, dando condições favoráveis à aglutinação de interesses específicos de grupos sociais diferenciados, explica Almeida. Significa dizer que o conflito entre Estado – que usa o poder nivelador para ter suas ações acatadas como ordens – e os povos amazônicos se agravou a ponto de extrema tensão nas últimas duas décadas, com a construção de barragens, rodovias, portos, aeroportos, ferrovias, usinas de mineração, e, mais recentemente, gasodutos e bases espacial.
“Em outras palavras, as políticas governamentais têm propiciado elementos básicos à formação de composições e de vínculos solidários, que passaram a nomear os novos agrupamentos como os ‘atingidos por barragens’, os ‘atingidos por base espacial’, os ‘remanejados’, os ‘deslocados’ etc.. O que parece importar é que categorias de circunstâncias (atingidos) surgem combinadas com outras permanentes, como ‘indígenas’ e ‘seringueiro’”, diz Almeida.
Esta nova organização está atrelada à recente estratégia do discurso dos movimentos sociais no campo que, ao designar os sujeitos da ação, politiza termos de uso local. “Termos e nomeações de uso local, através de critérios ecológicos e étnicos, adquirem expressão político-organizativa e são objetivados em movimentos sociais”, explica o pesquisador.
A produção de mapas cartográficos e de livros sobre conflitos específicos ganhou relevância dentro do projeto enquanto estratégia para dar maior visibilidade a experiências que são usualmente esquecidas ou mantidas sob uma forma de invisibilidade social – no contexto geográfico, inclusive. A expectativa é de que os resultados possam ser utilizados nas diversas esferas do poder público, subsidiando ações que disciplinem os crimes ambientais, fazendo com que perícias, pareceres e laudos científicos se tornem subprodutos do trabalho de investigação, e, com isso, as populações tenham seus direitos respeitados.
A matéria completa vai estar na sexta edição da revista Amazônia Ciência, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam), prevista para ser lançada em julho.
Michelle Portela – Decon/Fapeam