Especial Magníficas: Marilene Corrêa, reitora da UEA


Já aos 25 anos, Marilene Corrêa da Silva Freitas era mãe de três filhos, o que nunca lhe impediu de ser uma das mulheres mais ativas dentro dos movimentos sociais. Graduada em Serviço Social pela Universidade Federal do Amazonas, com mestrado e doutorado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Universidade Estadual de Campinas, respectivamente, e pós-doutorado em Paris/UNESCO e na Université de Caen France, Marilene ocupa lugar de destaque no cenário das discussões sobre a Amazônia, aliando ciência e saber tradicional. Ao ajudar a construir e a fortalecer a Universidade do Estado do Amazonas (UEA), ela tem a certeza de que, em parte, já cumpriu seu dever educacional com o povo amazonense, legando às futuras gerações os benefícios de uma nova universidade. Marilene Corrêa, a magnífica reitora da UEA, é a entrevistada desta semana do Especial Magníficas, que apresenta as reitoras que atuam no Amazonas.

 

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Agência Fapeam – Fale um pouco sobre sua trajetória acadêmica.

Marilene Corrêa – Tive a sorte de ter uma vida profissional como assistente social plena. Implantei um serviço de terapia no Hospital Colônia Eduardo Ribeiro no momento em que eu saia do estágio para a vida profissional. Ao mesmo momento em que concluía meu curso de bacharelado pela Universidade Federal do Amazonas, eu já fazia pós-graduação no nível de especialização em Administração Hospitalar, porque trabalhava na área e estudava em uma pós-graduação em Pesquisa em Ciências Sociais. Então, esses eventos da minha vida profissional, que foi muito prematura, me fizeram entrar na universidade aos 25 anos, como especialista. Em seguida, foi-me apresentada a questão de que a formação acadêmica era uma exigência, ou seja, era necessário fazer mestrado, doutorado e pós-doc. Daí, como havia uma intensa transformação da Ufam, com a federalização da universidade, para mim propiciou uma inserção na vida nacional também precoce, dentro da carreira da docência. Eu diria, assim, que desse trabalho de compreensão da Amazônia a partir da relação saúde-doença e logo depois a compreensão da Amazônia com "campo" de formação da sociedade nacional — mas como outsider, vista de fora —, foi que se deu o fortalecimento de minha carreira profissional, sendo que esses eventos e esses fatos me empurraram para a consolidação de minha atividade como pesquisadora e docente. Creio que minha geração foi beneficiada por essa alteração institucional, a qual compeliu muitos profissionais a seguirem uma formação mais sólida.

Agência Fapeam – Como surgiu o interesse pela vida acadêmica?

Marilene Corrêa – Meu interesse pela vida acadêmica vem muito da infância interiorana. Esta infância, para uma amazônida dos anos de 1960, não era tão desigual como é hoje. A experiência, assim dada, permitiu-me ver duas grandes contradições: a capital em relação ao interior. Foi o início de uma experiência acadêmica já focalizada em problemas sociais, no desenvolvimento regional e na necessidade de superação de obstáculos, fossem eles materiais ou institucionais. Isso me empurrou para um determinado direcionamento. Agora é preciso que se diga que tudo isso foi feito concomitante à vida pessoal. Vivi intensamente as realidades e mudanças na Amazônia e no Brasil. 

Agência Fapeam – E sobre a atividade sociopolítica da senhora. Como ela se deu?

Marilene Corrêa – Aos 25 anos eu já era mãe-de-família. Tinha três filhos e levava uma vida de classe média alta. Mas participava da formação e articulação de inúmeras instituições que hoje estão perenes no Brasil, como a CUT (Central Única dos Trabalhadores), o Partido dos Trabalhadores (PT), o Centro de Defesa dos Direitos Humanos e a Associação Nacional dos Professores. Vivi intensamente as realidades de mudança da Amazônia e do Brasil. E o que eram essas mudanças? A entrada do capitalismo agrário na região, o começo da problemática ambiental e o deslocamento do interior para a capital, devido a Zona Franca. Havia também a questão da criação de uma estrutura de serviços territorialmente consolidados como pólo de uma ditadura militar. É só a gente lembrar do pólo minero-metalúrgico no Pará, do Pólo Industrial, do madeireiro, do florestal e, além disso, de Rondônia, com inúmeros projetos de colonização, cujos efeitos desembocam em impactos populacionais. Ou seja, toda essa agressão do movimento do capitalismo na Amazônia trouxe consequências, mas as de maior impacto não são analisadas ainda, na época, porque tiveram projeções em um tipo de compreensão institucional da região que era impossível a outras gerações que tivessem vivenciado sem ser testemunha dela. Em suma, fiz parte dos mais importantes movimentos de estruturação da sociedade civil. Não era a criação de uma ONG qualquer, que vai viver com dinheiro público, são criações de instituições autônomas e independentes.

Agência Fapeam – Como era para uma mulher transitar nesse ambiente predominantemente masculino?

Marilene Corrêa – Mas tinham muitas mulheres nesses ambientes também. Basta lembrar que 75% da mão-de-obra era feminina. Isso não era muito diferente nos setores de serviços e na universidade também não. Creio até que hoje ainda sejamos maioria na Ufam. Isso significa dizer que demograficamente nós tínhamos uma presença grande, em diretorias e movimentos, instituições, lideranças políticas. Eu me lembro que, vendo a Lúcia Antony como vereadora, não posso deixar de me remeter ao passado, quando ela era líder do movimento estudantil, e eu já professora universitária, e havia dez grupos feministas no Estado, entre 1979 e 1982. Então, foram lideranças importantes do ponto de vista identitário e intelectual e não se pode esquecer disso.

Agência Fapeam – Havia preconceito naquela época?

Marilene Corrêa – Ele existia, mas, no ambiente universitário, o preconceito é diferente do ambiente contemporâneo, do politicamente incorreto. O preconceito na universidade vem metamorfoseado no plano das idéias. Qual era o principal preconceito, então? Não era ser negra, era estar no PT. Qual era, ainda, o principal preconceito: era não ser o ponto de concordância do ritmo da instituição interna, e isso se consolidou com a criação da Adua (Associação dos Docentes da Ufam). Eu fui a primeira secretária-geral da Associação. Essa associação não tinha fins lucrativos nem era para beneficiar os funcionários. Nós queríamos uma universidade democrática, popular, de qualidade e amazônica. O que significa ser tudo isso para a nossa geração? Significa que todos os campos disciplinares tinham de ter um foco. Serem universais, na melhor forma possível, mas sempre com o olhar sobre a Amazônia, as populações e os processos de formação da realidade regional. 

Agência Fapeam – Como foi conciliar essa questão com a vida em família?

Marilene Corrêa – Fui mãe aos 17 anos e nunca vi problema para isso. Eu hoje acho que as moças são muito preguiçosas, não gostam de cuidar de suas famílias e além de tudo estudam muito mal. Eu quase faço uma generalidade disso porque as pessoas da minha geração tinham de cuidar de seus afazeres domésticos, educar bem seus filhos e não fazer um curso de qualquer modo. Porque, veja, na situação de você estar em oposição total, o interessante não é ser o mais ativista, mas o melhor intelectualmente. E isso impõe desafios: eu hoje pergunto a mim mesma como conciliei tudo isso porque nunca vi nenhuma dificuldade em ser mãe, jovem, uma vez que meus filhos me acompanharam em todos os momentos de minha trajetória acadêmica.

Agência Fapeam – E como a senhora foi criada?

Marilene Corrêa – Frequentemente, vocês, novos jornalistas, pensam que as famílias interioranas são famílias pobres e desprovidas de recursos. Não é verdade. Há uma linhagem de famílias que são extremamente discretas e não enriqueceram na vida pública. Elas, de certo modo, participaram da transição do desmoronamento de uma economia regional para a Zona Franca. Geralmente, vocês conhecem os estratos formados a partir da riqueza fácil e de um enclave, que é a Zona Franca. Eu não faço parte desses estratos, venho de uma formação anterior. Venho de uma família que tinha educação, ilustração, leitura e uma boa biblioteca. Minha família tinha uma meta. Todos em casa funcionavam a partir dessa meta, a da ilustração em relação aos estudos.

Agência Fapeam – A senhora teve professores particulares?

Marilene Corrêa – Minha mãe era professora formada plena e ela vinha de uma educação excelente de freiras carmelitas. Portanto, era uma educação de família interiorana que ainda acreditava na ética educacional. Quem estuda apenas com sua mãe e seus irmãos não cola de ninguém, não aprende a sabotar nem a enganar. Quem assim procede tem de ser o melhor. Aliás, essas experiências educacionais de famílias que foram criadas no isolamento dos seringais ou no isolamento das habitações e povoamentos interioranos deveriam ser melhores estudadas, pois são pessoas que falam bem, articulam bem a lógica, a prática, a história e o empírico, além de serem profundamente enraizadas em sua realidade. Significa dizer que eles não são desmemoriados pela educação. Pelo contrário. Eles são muito mais conscientes. Não sou da geração da educação de massa.  

Agência Fapeam – É difícil conciliar a maternidade com os trabalhos de pesquisadora?

Marilene Corrêa – Não acredito nisso. A questão de não ter filhos, por exemplo, é uma opção.  Não acredito que o estado pleno de condições totais para aprender alguma coisa seja exigência de qualidade. Todas as minhas colegas, em todos os países em que morei, nas instituições em que estudei, inclusive dentre minhas colegas USPianas, PUCianas, de Unicamp, todas as que tinham condições melhores de estudo não eram as mais bem sucedidas, do ponto de vista dos resultados, e se perdiam em intermináveis dilemas existenciais e intermináveis discussões nas quais elas criavam os obstáculos. Creio que a falta de foco leva a esse tipo de argumento, o de que a maternidade impede de fazer alguma coisa, de que a pobreza impede as pessoas de estudarem. Não aceito o argumento “há, sou assim porque sou pobre, porque fui mãe muito cedo, porque não tive oportunidade”. Quando não há situação de exclusão e quando esses dilemas individuais da classe média impõem uma certa justificativa, acho que isso só piora as coisas… Grande parte da minha atividade com alunos de mestrado e doutorado, hoje, é fazê-los se concentrar em um determinado tema e não perderem o foco.     

Agência Fapeam – Comente, por favor, sobre a atual situação atual da UEA? 

Marilene Corrêa – Hoje nós temos institutos de nomes pomposos, como os de ciência e tecnologia — que nada mais eram do que escolas técnicas — e isso nós fez ter o maior número de alunos. A Universidade do Estado do Amazonas é a que tem maior capilaridade no território amazonense e ela, ou melhor, os que nela trabalham, não podem errar. É uma responsabilidade enorme. Isso porque os mecanismos de controle da UEA não estão lá em Brasília, estão aqui, no sistema estadual de C&T e nos sujeitos que participam da vida universitária. A UEA não pode errar porque ela é parceira de governos municipais e fortalece inúmeras políticas públicas, mediante as quais a universidade dá suporte, como o Programa Brasil Alfabetizado: Reescrevendo o Futuro, o projeto Amigos da Saúde etc. Então, não podemos errar nem com os parceiros internos e muito menos com os sujeitos que compartilham a efetivação dessa instituição. Há desafios que foram gradativamente superados, como o reconhecimento dos cursos e a instalação de mestrados e doutorados. Fizemos um trabalho que já está projetado para os próximos 20 anos, formando tecnólogos, mestres e doutores, dentro da malha de necessidade que o Amazonas tem é uma ação que se executa em duas décadas, porém fizemos em dois anos. Mas, mais do que isso, é o legado que universidade vai deixar para o Amazonas: foram 1,2 mil profissionais concursados em regime estatutário, com um corpo de professores denso, o qual dá um aporte à economia do Estado de mais de R$ 6 milhões, além de técnicos e pessoal administrativo em todos os núcleos do interior. É um desafio que tem a ver com a própria sustentabilidade do Amazonas. A universidade sabe do papel institucional que ela tem.    

Agência Fapeam – Qual o papel da UEA para o desenvolvimento da Amazônia?

Marilene Corrêa – Ela tem um impacto na agenda científica da região Norte e ele não tem só a ver com a universalização do acesso. Tem a ver com o programa de pesquisa que foi altamente estimulado pelo sistema estadual de ciência e tecnologia. Eu lembro que no primeiro ano de criação da Sect (Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia), a UEA não tinha sequer 1% do fomento à pesquisa. Hoje esse fomento é realizado em várias direções: para a saúde, a engenharia, às ciências humanas e sociais. Há uma ampla inserção no sistema estadual de C&T. Eu diria que os desafios são enormes. A UEA soube captar para dentro dela lideranças científicas, e não dá para dizer que essas lideranças estejam fora do diálogo nacional, praticando a falsa modéstia. Hoje creio que a própria Ufam, que tem 100 anos à frente da UEA, reconhece o lugar estratégico que a universidade estadual ocupou não só no interior, mas também dentro da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). Temos parcerias com as maiores universidades brasileiras. São programas grandes e de longo alcance, com estratégias específicas. A UEA tem um destaque na região Norte e no âmbito da cooperação estrangeira também.          


Agência Fapeam – Como é a parceria entre UEA e Fapeam?

Marilene Corrêa – Ela poderia ser maior no sentido estratégico do desenvolvimento regional. A Fapeam ainda privilegia as instituições federais, como Ufam e Inpa. Maior no contexto do desenvolvimento regional. Mesmo assim, creio que a Fundação faz o papel dela, um papel extremamente inovador. O crescimento da UEA não é aritmético, é geométrico, então, cedo ela própria irá equilibrar essa curva, independentemente da Fapeam.  

Agência Fapeam – Como a senhora resumiria a Marilene Corrêa como mãe e profissional?

Marilene Corrêa – Quem tem de resumir, acredito eu, são os meus filhos, os meus empregadores…

 

Agência Fapeam – Mas a senhora é uma mulher realizada?

Marilene Corrêa – Sim. Fiz tudo o que queria fazer. Executei tudo o que quis executar, e isso sem ficar livre dos meus papéis mais humanos, de mãe, mulher, avó — porque já sou avó. Eu consegui conciliar as coisas, uma vez que não tenho nenhum filho marginal. Fui extremamente competente em relação a esses papéis profissionais. Abomino quem usa sua carreira profissional para beneficiar sua família. Isso é a questão da ética. Tenho cinco filhos e quatro netos e sempre conciliei as duas carreiras.

 

 

Edilene Mafra e Renan Albuquerque Agência Fapeam   

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