Espécies nativas estão desaparecendo de igarapés urbanos
As informações fazem parte da dissertação de mestrado: “Efeitos da Fragmentação Florestal e da Poluição sobre as Assembléias de Peixes de Igarapés da Zona Urbana de Manaus, Amazonas”. A pesquisa foi desenvolvida por Hélio Daniel Beltrão dos Anjos, orientada pelo cientista Jansen Zuanon (INPA) e apresentada ao Programa de Pós-graduação em Biologia Tropical e Recursos Naturais do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA).
A pesquisa, primeiramente, tinha como objetivo verificar os efeitos da fragmentação florestal na estrutura e composição das assembléias de peixes. No entanto, o número de igarapés íntegros (preservados) e situados em fragmentos florestais urbanos era insuficiente. “Deparamos com outras situações como igarapés eutrofizados (poluídos) e bastante assoreados. Então resolvemos investigar além da fragmentação, quais outros fatores poderiam estar envolvidos no processo de degradação dos ambientes aquáticos, e por conseqüência afetando os peixes”, revela o pesquisador.
Anjos explica que o trabalho faz parte de um grande projeto denominado “Ygarapés”, que é financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Fundação “O Boticário” de Proteção à Natureza.
A pesquisa, que demandou dois anos, constatou duas situações distintas nos igarapés dos fragmentos florestais urbanos. Dos 15 igarapés analisados, nove ainda estavam conservados, enquanto seis já haviam sido modificados pela ação do homem. Entre os danos causados pelo avanço da urbanização, o mais visível era a poluição pelos esgotos domésticos. “O derramamento de esgotos sem tratamento nesses córregos causa a perda da qualidade da água, por exemplo, o aumento significativo nos valores de pH, amônia, nitrito e redução dos níveis de oxigênio dissolvido na água”, explica.
Segundo Anjos, nos igarapés poluídos predominam as espécies que já estão adaptadas a baixos níveis de oxigênio. Neles foram encontradas 19 espécies, entre: exóticas como o guppy ou lebiste (Poecilia reticulata, Poeciliidae) e a tilápia, Oreochromis niloticus (Cichlidae), as quais representaram 85% e 1,4% dos indivíduos capturados, respectivamente. “Outras espécies consideradas invasoras locais, como o acará-cascudo (Cichlasoma amazonarum, Cichlidae), o bodó (Ancistrus sp,) e o acari-bodó (Liposarcus pardalis), ambos da família (Loricariidae), foram comuns e bastante abundantes, representando juntas 7,3% dos indivíduos capturados”, ressalta.
Em igarapés com bom estado de conservação, pequenas piabas como Pyrrhulina brevis, Copella nigrofasciata e C. nattereri (Lebiasinidae), Hyphessobrycon melazonatus e Crenuchus spilurus (Characidae) e Rivulus compressus (Rivulidae); além de grandes acarás (Aequidens pallidus) foram freqüentes e bastante comuns nesses ambientes, que estão livres ou pouco afetados por impactos antrópicos (causados pelo homem).
Em relação ao desaparecimento das espécies nativas, Anjos diz que elas são sensíveis às mudanças ambientais. A partir do momento em que o ambiente é modificado, a situação fica fora de controle e, conseqüentemente, elas desaparecem dos igarapés. Nesse momento ocorre o processo de invasão por espécies exóticas e outras de origem local nesses ambientes. Essa invasão não acontece quando o igarapé conserva suas características naturais. “É possível que tal resistência à invasão seja decorrente de vantagens competitivas apresentadas pelas espécies nativas, o que precisa ser estudado”, acrescenta o pesquisador.
Igarapés poluídos – Outro problema grave verificado durante os trabalhos de campo foi o assoreamento dos igarapés. Anjos afirma que a retirada da vegetação primária, que margeia os igarapés, pela população que habita a vizinhança dos fragmentos florestais causa a perda de grande quantidade de solo durante o período chuvoso. Ele explica que as enxurradas transportam os sedimentos para o igarapé e acabam com a variedade de ambientes para a fauna aquática.
“As pessoas invadem o local, derrubam as árvores nativas, retiram a madeira para a construção de barracos e, conseqüentemente, há a degradação do ambiente. É fundamental realizar ações por meio de políticas públicas que ajudem a conservar os ambientes que ainda mantêm suas características naturais”, alerta e acrescenta: “medidas preventivas como a construção de fossas sépticas para as casas que margeiam os fragmentos e a canalização dos esgotos para fora dos igarapés são de extrema relevância. Mesmo os parques e os locais pertencentes a órgãos públicos também estão modificados, por exemplo, o Parque Sumaúma, que é da prefeitura”, afirma.
De acordo com Anjos, outro exemplo da degradação dos igarapés foi a construção do bairro Nova Cidade, situado na zona Norte, cujos igarapés tiveram suas margens desmatadas e o leito e as margens foram revestidos com concreto. “Não é um problema isolado, por exemplo, as residências localizadas nas proximidades do Parque do Mindu jogam os esgotos no igarapé. Vale ressaltar que não foi encontrada nenhuma espécie de peixe nativa, mas somente invasoras no local”, alerta.
Segundo ele, os igarapés conservados (com maior riqueza de espécies de peixes) encontram-se, geralmente, em áreas federais, onde as pessoas não têm acesso. Entretanto, o terreno do Aeroporto Internacional Eduardo Gomes foi o local onde foi encontrada uma das menores riquezas de espécies: apenas duas. Isso, provavelmente, pode está relacionado ao esgoto despejado nesse igarapé, apesar de ser supostamente tratado. “É muito pouco em um fragmento de 170 hectares”, informa.
Desaparecimento de espécies – Em relação à quantidade de peixes encontrados nos igarapés, Anjos ressalta que houve um aumento na abundância de peixes e uma redução da riqueza de espécies nos igarapés poluídos. Do total capturado, 3577 exemplares, 1385 era de igarapés conservados e 2192 de igarapés alterados. Além disso, enquanto nos ambientes conservados (semelhantes aos ambientes naturais da Amazônica Central) existiam 31 espécies, nos alterados foram encontradas apenas 19. Contudo, boa parte era de peixes invasores.
O estudo também constatou que os igarapés de fragmentos florestais possuem uma composição de espécies distinta entre eles. Ou seja, a similaridade de espécies é muito baixa, até mesmo entre igarapés bem próximos: menos de 20%. As espécies encontradas, por exemplo, no igarapé localizado na Universidade Federal do Amazonas (Ufam) não eram as mesmas do SESI, situados próximos. Nem as espécies encontradas no igarapé da Escola Agrotécnica eram as mesmas da Nascente do Ipiranga ou do Acará 1 e 2, próximos da Reserva Florestal Adolpho Ducke.
“É possível que o isolamento de populações de peixes por barreiras químicas atuais (igarapés altamente poluídos entre os fragmentos urbanos) seja responsável por parte das diferenças observadas na composição de espécies em igarapés próximos, ao dificultar (ou mesmo impossibilitar) processos de recolonização dos ambientes fragmentados”, acrescenta.
O pesquisador lamenta que o acelerado crescimento populacional de Manaus, associado à prática de invasões e desmatamento de grandes áreas de florestas na periferia da cidade, têm condenado os igarapés urbanos ao desaparecimento. Junto com esses igarapés, perde-se também uma parcela importante da biodiversidade regional, antes mesmo de ser adequadamente conhecida.
Uma das medidas necessárias para que as espécies não desapareçam passa, especialmente, pela preservação das matas ciliares e das nascentes de água, diz o pesquisador. Segundo ele, é preciso conservar todos os fragmentos florestais que abrigam conjuntos de espécies freqüentemente diferentes, e que contribuem para a manutenção da biodiversidade regional. “A destruição de qualquer fragmento pode resultar na extinção local de várias espécies de peixes, com perda de uma parte importante da diversidade de peixes na região de Manaus”, finaliza.