Migração de índios Sateré-Mawé gera desequilíbrio de sexo nas aldeias
A migração Sateré-Mawé da Terra Indígena Andirá-Marau, na região do Médio Amazonas, é seletiva quanto a sexo e idade, com predominância de mulheres e de população em idade ativa para o trabalho e para o estudo. Este fluxo está causando um desequilíbrio entre os sexos nas aldeias, comprometendo o número de casamentos e, conseqüentemente, o de nascimento de novos membros dessas famílias indígenas. É o que aponta o estudo “Movimentos Migratórios da População Sateré-Mawé: Povo Indígena da Amazônia”, da pesquisadora Raylene Rodrigues de Sena.
Trata-se de uma pesquisa sobre dinâmica demográfica – que estuda o que faz uma população aumentar, diminuir ou estagnar, considerando fecundidade, mortalidade e migração como indicadores. Os resultados estão disponíveis na dissertação de Raylene, defendida recentemente no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam).
A análise foi feita com base na publicação “Sateré-Mawé: Retrato de um Povo Indígena”, organizada por Pery Teixeira, doutor em Demografia e professor titular da Ufam. O livro expõe o conteúdo do relatório técnico do Diagnóstico Sócio-Demográfico Participativo da População Sateré-Mawé, realizado em 2002 e 2003. A partir dessas informações, a pesquisadora identificou que as cidades de Parintins, Maués e Barreirinha recebem a maior parte dos Sateré-Mawé que decidem sair das aldeias para morar nas cidades. Os migrantes são, em sua maioria, mulheres e pessoas em idade econômica ativa, em busca de estudo e emprego
Segundo a pesquisadora, o fluxo está causando um desequilíbrio entre os sexos e atualmente há mais homens do que mulheres Sateré-Mawé nas aldeias da TI Andirá-Marau. Raylene alerta que esse desequilíbrio pode trazer impactos de longo prazo, que comprometeriam a vida nas aldeias. “Há um número superior de homens na terra indígena, podendo no futuro comprometer o número de casamentos e conseqüentemente o número de nascimentos nas aldeias”.
A necessidade de constituir família já é, portanto, um dos principais fatores para a migração, segundo declararam os próprios indígenas à pesquisadora. A procura por trabalho, a necessidade de estudar e os conflitos internos nas comunidades também foram mencionados, esse último, porém, com menor importância. De acordo com o estudo, 12% da população Sateré-Mawé está morando em área urbana. A migração tem provocado sérios problemas de adaptação, causando mudanças culturais dos Sateré-Mawé, como por exemplo, perda do idioma, dos rituais e da sua forma de vida comunitária.
Uma percepção importante entre os indígenas que migraram para as cidades foi apontada pela pesquisa. “Os Sateré-Mawé que moram naquelas cidades, apesar das migrações, têm plena consciência que continuam a viver na terra que pertenceu a seus antepassados, todavia, não parecem querer reivindicar pra si a posse da terra. Apenas reclamam o direito de poder estar ali também, caso seja sua vontade ou tenham motivo para isso”, assinala a pesquisadora.
Ainda segundo Raylene, a migração não acontece somente das aldeias para as cidades, mas também de aldeia para aldeia. A pesquisa mostra que as mudanças de domicílio entre os Sateré-Mawé, mesmo na área indígena, são freqüentes. Ali, há quase um equilíbrio entre o número de pessoas que nunca saíram de sua comunidade de nascimento e aquelas que já fizeram algumas mudanças residencial, que correspondem a 52%.
De modo geral, a pesquisadora concluiu que as comunidades indígenas, assim como as demais, buscam um equilíbrio que lhes proporcione os meios para suprir suas necessidades, sejam elas relacionadas à subsistência, segurança, educação ou a outros fatores. Ou seja, na ausência desses fatores, a alternativa é migrar para a cidade em busca de melhores condições de vida. Entretanto, a pesquisadora reconhece que a questão migratória entre os Sateré-Mawé ainda necessita de novos estudos, aprofundados, que compreendam toda a complexidade do deslocamento humano entre essa etnia indígena.
Evolução dos estudos demográficos
O estudo de Raylene Sena contribui para consolidar a correção de distorções históricas, principalmente quanto aos trabalhos demográficos envolvendo povos tradicionais da Amazônia, em especial os indígenas. Nos anos 80, praticamente inexistiam pesquisas sobre demografia que viessem a complementar ou subsidiar estudos antropológicos desses povos. Inclusive, o censo nacional do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 1980 distinguia a população brasileira nas categorias: branco, preto, amarelo e pardo, sem levar em consideração de forma específica a população indígena.
O primeiro censo de abrangência nacional a levantar informações sobre povos indígenas foi o de 1991, que incluiu a categoria índio na variável cor, para diferenciá-lo das outras populações incluídas na categoria pardo. Porém, o questionário não avançava em outros aspectos importantes à compreensão da questão indígena, como desagregação, e por etnia, quanto à língua. Para Raylene, a cobertura desse censo também não foi satisfatória, já que foram recenseados somente os índios moradores de postos indígenas da Fundação Nacional do Índio (Funai), de áreas urbanas e aqueles residentes em missões religiosas.
No censo de 2000, as limitações quanto à cobertura da população indígena foram corrigidas, mas manteve-se a utilização de apenas um quesito no levantamento censitário, o que prejudica sobremaneira a análise.
As dificuldades relativas à investigação sobre o comportamento demográfico dos indígenas tendem a diminuir, em razão de novas oportunidades investigativas e a intensificação de experiências em áreas indígenas específicas – o projeto de Raylene Sena é um exemplo – contemplando quesitos importantes, como a etnia.
A ausência de dados demográficos sobre os povos indígenas mobilizou as instituições representativas desses povos a realizar seus levantamentos censitários, como a Federação das Organizações Indígenas do Alto Rio Negro (Foirn), em parceria com terceiro setor, como a Organização Não-Governamental (ONG) Instituto Socio-Ambiental, com instituições de ensino e pesquisa, além de instituições internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU).
Em 2002, foi criado o Comitê de Demografia dos Povos Indígenas da Associação Brasileira de Estudos Populacionais (Abep). O resultado dessa articulação foi quase que imediato, com o crescimento de trabalhos sobre a demografia dos povos indígenas, apresentados em seminários e encontros da Abep.