O olhar de meninas vítimas de violência sobre suas famílias
O que pensam as crianças e as adolescentes em situação de risco social sobre a família? A pesquisadora Maria Eunice Sá Pitanga se fez a mesma pergunta ao trabalhar com crianças e adolescentes em situação de rua e chegou a conclusões alarmantes. Entretanto, o processo de ressocialização pode fazer dessas meninas cidadãs, mesmo que com cicatrizes, e incentivá-las a não cometer os mesmos erros que seus pais.
Os dados são resultados da pesquisa “As representações sociais da família construídas pelas meninas atendidas na Casa Mamãe Margarida na cidade de Manaus/AM”, que Maria Eunice desenvolveu no Programa de Pós-graduação em Educação, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam).
Em busca das respostas, a pesquisadora trabalhou com dois grupos focais, ambos formados por meninas da Casa Mamãe Margarida, que atende crianças em situação de risco social, na zona Sul de Manaus. O primeiro contava com cinco meninas na faixa etária de 10 a 12 anos; e o segundo, outras cinco, entre 14 a 16 anos. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) diz que criança é toda pessoa com até 12 anos e adolescente, até 18 anos.
O estudo demonstrou que, tanto para crianças e adolescentes, a família é formada por mãe, pai e irmão; a figura dos avós apareceu somente em situações específicas. Também está presente, permanentemente, a negação da família, que não se constitui socialmente.
Entretanto, os elementos são diferentes entre crianças e adolescentes. Enquanto as crianças constroem para si o modelo de família caracterizado por mãe, pai, irmãos e avós, os adolescentes apresentaram altos níveis de negação da família, por ausência de laços afetivos. A representação social da mãe também contém elementos diferentes. Ela é representada pelas crianças como uma figura criadora, mas, para as adolescentes, os elementos são negativos da figura materna que elas conheceram.
Já figura do pai, pouco existe na vida dessas pessoas. “Os elementos das representações sociais das crianças e adolescentes, no campo semântico relativo à figura paterna revela a ausência do mesmo”, afirma Maria Eunice.
De acordo com a conclusão da pesquisa, mesmo estando em situação de risco social, as crianças e adolescentes não são diferentes de outras crianças. Sonham em ter uma família, de acordo com os preceitos vigentes na sociedade. Porém, ainda há chances de transformar a vida dessas meninas. “As representações sociais são marcadas pelo provisório, posto que são crianças e adolescentes”.
A oferta de oportunidades e o contato com a uma realidade diferente da situação de exclusão que conheceram antes do atendimento, com base no protagonismo juvenil – como faz a Casa Mamãe Margarida -, pode ser o fio condutor dessa transformação. “Acreditamos que o processo de ressocialização possa fazer desses sujeitos cidadãos, mesmo com algumas cicatrizes, e que os mesmos não venham a fazer o mesmo que seus pais fizeram”.
Políticas públicas
O interesse por estudar o tema se deu a partir de um trabalho realizado com crianças e adolescentes em situação de rua, quando Maria Eunice percebeu que eram oriundas de famílias desestruturadas econômica e socialmente. “Transitavam entre suas casas, instituições de abrigo e a rua onde realizavam algum tipo de trabalho como também praticavam pequenos furtos para levarem dinheiro para casa ou comprarem drogas”, explica.
Para realizar o estudo, a pesquisadora optou por trabalhar com a Casa Mamãe Margarida, localizada na zona Sul de Manaus, por atender meninas em situação de risco pessoal e social através do protagonismo juvenil. É uma instituição de caráter filantrópico, social, educacional e religioso, sem fins lucrativos, dirigida pelas Filhas de Maria Auxiliadora (Irmãs Salesianas) e mantida através de convênios e/ou doação de benfeitores.
As meninas atendidas são provenientes de famílias com problemas econômicos e sociais, características comuns a crianças e adolescentes vítimas de crimes. “No Brasil, apesar do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), as crianças continuam tendo seus direitos básicos violados. Além de estarem fora da escola, muitas morrem de desnutrição, são exploradas sexualmente, usadas para vender drogas, mendigar e outros fins. O mais preocupante e alarmante de tudo isso é que, na maioria das vezes, toda a forma de violência contra os mesmos acontece no âmbito da família”, denuncia a pesquisadora.
Para ela, é fundamental conhecer as representações sociais construídas por essas meninas a respeito da família – por influenciar na formação e na conduta -, se houver vontade política e social de se construir políticas públicas eficazes para esse público. “A representação social ajuda a decodificar a vida cotidiana, tornando possível atribuir a toda figura um sentido e a todo sentido uma figura”.
Michelle Portela -Decon/Fapeam