Oralidade deve ser base da universidade indígena proposta pela UEA
Ribamar Bessa Freire defende a criação da Universidade Indígena como espaço à oralidade e ao conhecimento tradicional
O pesquisador João de Jesus Paes Loureiro costuma defender que a mitologia amazônica cumpre papel tão importante quanto a grega, estando a regional em vantagem. Enquanto aquela nos chega filtrada por autores, como Homero, nós recebemos essas histórias diretamente da fonte (pescadores, agricultores da várzea, índios). A fantasia – como prática social desses povos – explicaria a utopia social na Amazônia.
Essa distinção só é possível porque ainda existe, na narrativa dos povos indígenas brasileiros, a prática da transmissão oral de conhecimento, permitindo que os povos amazônicos contemporâneos contem seus saberes, mitos e lendas nas formas originárias.
A importância da oralidade seria elemento essencial à criação de uma universidade indígena na região, universalizando um conhecimento até então clandestino ao ensino, como defende o pesquisador Ribamar Bessa Freire, coordenador do Programa de Educação dos Povos Indígenas, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj)
“Seria um passo enorme para o país o reconhecimento e a valorização cientifica das línguas e dos saberes tradicionais baseados na oralidade, evidenciando o que antes estava clandestino e, automaticamente, combatendo o preconceito e a discriminação”, afirmou.
Uma proposta de universidade voltada para os povos indígenas está sendo discutida no âmbito da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), com participação do movimento indígena. Entre os principais temas em discussão está o currículo do curso, cuja formulação contará com a participação de lideranças indígenas, que poderão propor a adequação das disciplinas às realidades amazônicas, dialogando com o conhecimento científico.
A abertura da universidade indígena aos diversos saberes deve ser uma prioridade, como explica Ribamar Bessa. “A universidade indígena não pode ser voltada exclusivamente aos conhecimentos tradicionais, pois seria empobrecedor. Ela tem de dialogar com outras formas de conhecimento, pois não pode haver universidade fechada. Quanto mais aberta, mais amazônica será. O mesmo vale para a universidade indígena”.
A institucionalização de um programa da abrangência de uma universidade nesse modelo contribuiria para minimizar o isolamento das academias tradicionais. “As universidade não-indígenas é que estão isoladas. Elas precisam criar diálogo com essa universidade indígena, porque o conhecimento ocidental não pode ser consolidado como a única forma de saber”, criticou Bessa.
Para o pesquisador, ao reconhecer a existência de línguas e saberes, trazendo à tona saberes que antes estavam clandestinos, a academia estaria combatendo a discriminação do conhecimento tradicional. “Favoreceria a produção por parte dos índios nessa área. Que eles pudessem criar dentro da academia, dialogando com o conhecimento científico”.
A participação de estudantes indígenas nesse diálogo privilegiaria a oralidade e assim a universidade indígena seria o espaço institucional dessa prática. “Se a universidade aspira à ciência, ela só será atingida se for praticado o diálogo entre tipos de saberes particulares. O conhecimento ocidental é particular também”.
Por sua diferenciação, uma vez que optaria pela oralidade e não somente pela escrita – porém não em oposição a esta, mas complementar -, e a possibilidade de diálogo entre saberes, portanto, entre povos, a universidade estaria livre do isolamento. “Se for para criar gueto, melhor não criar. Mas sim, um espaço onde se possa privilegiar a oralidade”, afirma Ribamar Bessa.
“Quero ser narratólogo”
A empatia pela oralidade foi expressada pelo pesquisador ainda durante a palestra no auditório Rio Solimões, na Ufam, na última quarta-feira, por auto-definição, no contexto das pesquisas desenvolvidas nos últimos anos sobre narrativas indígenas. “Quero ser narratólogo”.
Para Bessa, os novos paradigmas do ensino devem romper com os métodos tradicionais, como o monolinguísmo nas escolas brasileiras. “Uma língua não mais exclui a outra. Agora, o bilíngüe no exercício cultural é inclusivo. Assim como os alunos não aprendem inglês nas escolas, seria interessante não aprender língua indígena”, disse, em tom de crítica à superficialidade do ensino de língua estrangeira na rede pública de ensino.
Exemplo dessa possibilidade é a própria formação indígena, cuja alfabetização se dá na língua materna e em português. “O que é contemporaneidade de uma etnia, por exemplo, os ticunas? Ser ticuna é ser bilíngüe”.
Para consolidar todos esses desafios, a própria universidade pode se consolidar como espaço de discussão das melhores formas de estudo sobre as narrativas orais e conservação das culturas indígenas. “Indigna como o mundo assiste a essas línguas serem extintas de modo generalizado. É um patrimônio da humanidade perdido, pois não se reconstrói uma língua”, finaliza Ribamar Bessa.