Pesquisa mostra que amazônida tem modo particular de festejar sua religiosidade


A religiosidade dos povos mestiços caboclos que habitam a região amazônica foi influenciada pela colonização portuguesa, por heranças indígenas e negras, com forte conotação popular. Aqui se vive uma religião através de elementos mágicos como a promessa e os ex-votos. Isto foi observado por um estudo sobre as festas religiosas e populares na Amazônia, tendo como locais de estudo Manaus, capital do Amazonas, e a sede dos municípios de Itacoatiara, Parintins e Manacapuru. Priorizando uma abordagem antropológica, a pesquisa buscou descrever aspectos comuns e prováveis peculiaridades destas manifestações.

Foram estudadas a festa religiosa de Santo Antônio da Terra Preta, em Manacapuru, a de Nossa Senhora do Carmo, em Parintins, e as do Divino Espírito Santo e de Nossa Senhora do Rosário, em Itacoatiara. Os pesquisadores também estudaram festas populares, como o Festival de Cirandas de Manacapuru e o Festival Folclórico do Amazonas. A primeira delas, segundo seus participantes, remonta ao século XVIII.

Segundo o coordenador da pesquisa, Ségio Ivan Gil Braga, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), todos estes eventos religiosos estariam ligados à fé popular pelo fato de envolverem promessas que em sua maioria culminam em agradecimentos materializados na forma de ex-votos, ou seja, dádivas aos santos que demonstrariam o cumprimento de uma obrigação ou promessa empenhada, tendo em vista uma graça recebida.

“É curioso observar que, mesmo considerando o acentuado desenvolvimento da técnica e da sociedade moderna, práticas e prescrições religiosas vivenciadas em séculos passados ainda continuam presentes na memória das pessoas, que continuam fazendo promessas e festas devotadas aos santos católicos”, destacou o professor, que é doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP).

Segundo ele, a festa de Santo Antônio da Terra Preta foi acompanhada durante dois anos, em especial à época de sua edição, na primeira quinzena do mês de junho, em Manacapuru. Nos depoimentos colhidos, as pessoas dizem que esta festa remonta aos tempos da cabanagem, revolução ocorrida no período regencial envolvendo o Amazonas e o Pará, portanto, festas de longa permanência na história regional.

“Conta-se, que o movimento cabano recrutava pessoas na região, jovens filhos dessas famílias, e uma maneira de buscar a intercessão do santo no plano divino era fazer promessa. Caso atendido, pagava-se promessa, ampliando-se assim a devoção popular, com novenas e sobretudo festa”, explicou Sérgio Gil.

Outra festa narrada pelo pesquisador, que também é chefe do departamento de Antropologia da Ufam, é a de Nossa Senhora do Carmo. “Observamos que no andor da santa havia várias fitinhas coloridas com inscrições de pessoas agradecendo, por exemplo, a cura de um problema de saúde, o fato de ter conseguido um emprego e de ter resolvido um problema conjugal”, diz. De acordo com Sérgio Gil, isto está ligado ao fato de “estarmos vivendo em uma sociedade contemporânea em que se multiplicam as ‘aflições’ com problemas de saúde, dinheiro e relações interpessoais”.

“Estas e outras situações constituem motivos que para as pessoas peçam ao santo ou santa intercessão quando se esgotam as possibilidades para resolução de problemas de ordem pessoal e social”, comentou o pesquisador.

Na festa do Divino Espírito Santo, em Itacoatiara, Sérgio Gil identificou que há promesseiros encarregados de erguer o mastro durante o fim da tarde, como forma de cumprir uma obrigação religiosa. À noite, outras pessoas penduram diferentes donativos como frutas e biscoitos, com a finalidade de oferecer algo ao santo e adornar o mastro.

“No dia seguinte o mastro é derrubado causando uma correria geral de crianças e adolescentes. Ao meio-dia, é oferecido um almoço aos inocentes, ou seja, para as crianças, onde pessoas levam gêneros como arroz, feijão, carne e frango também resultantes de pagamento de promessas por diferentes graças alcançadas. Este evento tem caráter familiar por ser comemorado por três famílias que deram início a festa, desde o final do século XIX, no bairro da Colônia, em Itacoatiara”, explicou.

Sobre as festas como a que ocorre em Itacoatiara, onde mastros são enfeitados, Sérgio Gil aponta o caráter agrário destes eventos, que foram trazidos para a cidade por migrantes que viviam no meio rural. O pesquisador assinala também que estas festas são oriundas de países ibéricos, que ainda mantêm muitos desses eventos, como a festa do Espírito Santo e dos Santos do mês de junho (Santo Antônio e São João, em Portugal, por exemplo). “É importante lembrar que somos um país de colonização ibérica, portanto, esse lado da colonização portuguesa vem muito em função do catolicismo que aqui adquire uma conotação popular”, acrescentou.

O pesquisador ressalta que, na região, estas festas ainda se mantêm com dimensão agrária, mas também possuem características modernosas, uma vez que é possível encontrar, por exemplo, bens industriais como dádiva, um pacote de biscoito ou outros gêneros que podem ser comprados mercado, quando se tratar de adornar um mastro do Divino Espírito Santo. “De fato, são práticas agrárias que acabaram sendo re-significadas no contexto urbano, mas a intenção e o simbolismo permanecem”, completou.

A pesquisa inicialmente financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Amazonas (Fapeam) e pelo CNPq, hoje foi desdobrada em outro projeto voltado para os Estados do Amapá e o Pará, com financiamento do CNPq, que possibilitou ao pesquisador acompanhar recentemente em Macapá a Festa do Divino Espírito Santo, onde a herança cultural negra caracteriza-se como algo marcante neste evento. Sérgio Gil comentou que os participantes cobrem o mastro com uma planta chamada “murta”, obtida em terras de remanescentes de quilombos na localidade do Curiaú, a cerca de dez quilômetros de Macapá.

Neste caso, a presença de negros é um forte elemento cultural do evento. “Em procissão pelas ruas de Macapá, ao mesmo tempo que a cultura negra se apropria da cidade, eles conservam a tradição quilombola ao trazer a murta da casa de parentes, para a casa do festeiro, o já falecido Seu Julião, e recobrem todo o mastro onde na ponta superior há uma bandeira que representa o Espírito Santo. Assim, elementos arcaicos característicos de uma identidade negra que se mantêm no contexto urbano de Macapá, adquirem novos significados dentro do espaço da cultura amazônica”, afirmou.

Em viagem de estudos financiada pelo CNPq, durante vinte dias a Portugal, o antropólogo comparou as festas de santo como eles chamam por lá, com as festas juninas estudadas na Amazônia. “Acompanhei a procissão de Santo Antônio em Lisboa e observei as pessoas vendendo, no largo da Sé e de Santo Antônio, que ficam próximos, medalhinhas e flores; em meio a isso havia muitos elementos de mandinga associados à devoção popular, como defumadores, olhos de cabra (tento), olho turco e outras coisas mágicas. Então, eles têm também associado à crença dos santos católicos elementos mágicos, tal como visualizamos no catolicismo popular e nas festas de santos estudadas na Amazônia”, comentou.

Festas populares e religiosidade

Sérgio Ivan Gil Braga destaca que nas festas populares a dimensão religiosa também se faz presente. Ao falar sobre o tema, cita Mário de Andrade, importante pesquisador do folclore brasileiro. Segundo ele, o autor de “Macunaíma” foi muito feliz em colocar a expressão danças dramáticas do Brasil, onde nestas manifestações festivas nós encontramos músicas, danças, drama, teatro e canto.

“Eu vejo no Festival Folclórico do Amazonas danças dramáticas em que a religiosidade está muito presente”, completou. Para Sérgio Ivan, “esta é uma dimensão que nos escapa porque às vezes nós nos prendemos a idéia da festa enquanto espetáculo e esquecemos que ela carregada significados de uma cultura popular”.

De acordo com o professor, foi realizada, em parceria com a Secretaria de Estado de Cultura do Amazonas (SEC), uma mesa-redonda com a participação de Eder de Castro Gama, seu orientando no mestrado em Sociedade e Cultura da Ufam. O mestrando explanou sobre o festival mostrando fotos de uma quadrilha que tinha como padroeira Nossa Senhora de Aparecida.

“Na alegoria, uma coisa que a platéia e o público não vêem são vários cartõezinhos com ex-votos do tipo: ‘nossa senhora nos ajude a ganhar este ano e dê saúde para todos’. O fato mostra que a religiosidade está presente e nós não temos olhar para isso”, argumenta.

A pesquisa financiada pela Fapeam e CNPq foi realizada no período de março de 2005 a abril de 2007e, segundo o coordenador, houve a preocupação em retornar a campo para acompanhar os momentos em que as pessoas se ocupam na preparação e na fase subseqüente a realização do evento. “Construiu-se um calendário das festas religiosas e populares do Estado do Amazonas, que mereceria ser publicado, sobretudo para conhecimento das novas gerações”, avaliou.

A importância da pesquisa pode ser confirmada pelo fato de que sua continuidade foi assegurada com o desenvolvimento de dois novos projetos, um deles coordenado pelo próprio pesquisador e com financiamento do CNPq, desdobrando os estudos para os Estados do Amapá e Pará. No âmbito internacional, a comprovação se dá pela participação do pesquisador em outro projeto de pesquisa voltado para o desenvolvimento de estudos comparados entre festas da Amazônia e festas de santos em Portugal.

Este projeto conta com financiamento do CNPq e integra a Rede de Estudos Urbanos Brasil-Portugal, com a participação de universidades brasileiras (UFAM, UFSE, UFCE, PUC-SP, UNICAMP, USP) e Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra – Portugal.

 

Cleidimar Pedroso – Decon/Fapeam

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