Religiosidade de Milton Hatoum é destaque na Paraíba


Um trabalho baseado na obra Dois Irmãos (2000), do escritor amazonense Milton Hatoum, foi destaque no Seminário Internacional de Ciências das Religiões, realizado no mês passado, na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). O autor do artigo, intitulado “A religiosidade árabe em Milton Hatoum”, é Valter Luciano Gonçalves Villar, também amazonense e aluno do Mestrado em Literatura Brasileira da UFPB.

O autor tem bolsa do Programa RH-Posgrad, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam). “Eu fiquei muito feliz porque uma das coordenadoras do evento pediu que eu fizesse uma apresentação extra, em outro grupo de trabalho, dado o fato de os professores terem gostado do artigo e do assunto”, disse Valter Luciano, em entrevista exclusiva.

O autor já prepara outro artigo para novas apresentações sobre o tema. O objetivo do trabalho de Valter Luciano é fazer um contraponto ao que ele chama de “uma campanha, veiculada diretamente pela mídia, contra os árabes” e contra o Islamismo. Essa campanha, segundo o autor, tem a finalidade de “reduzir, de forma depreciativa, a cultura árabe, notadamente as manifestações religiosas, onde se vê acentuar um caráter de irracionalidade, de luxúria, de crueldade, barbárie e fanatismo religioso”. E foi na obra de Hatoum que Valter Luciano encontrou argumentos para contrapor as “teorias conspiratórias” contra a religião islâmica.

Um dos argumentos do trabalho está fundado no Alcorão, o livro sagrado dos mulçumanos, e que á a base da religião monoteísta fundada pelo profeta Muhammad (570-632): a proposta de igualdade entre as pessoas. “Um dos hadiths manda que todo muçulmano trate o outro como seu igual, e é assim que Halim, único muçulmano da história (em Dois Irmãos), trata a todos, de forma eqüitativa, sem diferença de cor, classe, gênero. Não existe, para o muçulmano, essa história de que o sagrado está dissociado do secular”.

Esse código religioso dos muçulmanos está muito diluído na história de Milton Hatoum, mas Valter Luciano diz que é porque a religiosidade muçulmana é assim mesmo: “Ela não existe somente dentro das mesquitas, ela se expressa, acima de tudo, na cotidianidade”.

Para identificar os momentos em que a religiosidade se manifesta, Valter Luciano fez um trabalho de garimpagem minucioso. No artigo apresentado no Seminário Internacional de Ciências das Religiões, o autor destaca cinco fragmentos da história em que Halim demonstra o verdadeiro sentido da religião islâmica. “Expressão dessa tolerância representa o personagem Halim, muçulmano, patriarca de uma família de libaneses, radicada na cidade de Manaus”, escreveu em seu artigo.

A principal demonstração de tolerância entre as religiões e da livre expressão da religiosidade árabe pode ser observada no casamento de Halim com Zana, cristã maronita. Valter Luciano observa que, além de casar na Igreja da noiva, Halim tampouco se incomoda quando as amigas de Zana, todas maronitas, revelavam suas discordâncias com o casamento dela com um “maometano das montanhas”.

Outro trecho do livro que ganha destaque no trabalho de Valter Luciano é o momento de oração entre Zana e Domingas. “Numa conversa mediada por sentimentos de confiança no narrador, Halim, ao perceber que a sua esposa aproximar-se-ia da empregada Domingas, por intermédio da fé comum, gravaria uma afirmação que terminaria por reconhecer o valor da religião na vida das pessoas”.

O trecho em destaque no trabalho revela com mais precisão o comportamento do patriarca Halim: “As duas rezavam juntas as orações que uma aprendeu em Biblos e a outra no orfanato das freiras aqui em Manaus. “Halim sorriu ao comentar a aproximação da esposa com a índia. “O que a religião é capaz de fazer”, ele disse. “Pode aproximar os opostos, o céu e a terra, a empregada e a patroa.”

Valter Luciano também percebe na obra de Hatoum a forma fraternal com que Halim acolhe Nael, o narrador da história, filho da empregada com um de seus filhos. “Nomeado como o trabalho de Deus, conforme sugere a significação do seu nome em árabe, Nael receberia um tratamento paternal, dispensado por Halim. Desse relacionamento, se tornaria herdeiro legítimo dos ensinamentos do patriarca da família de libaneses, transmitidos durante todo o tempo que conviveram, confabulando, trocando confidências”.

Lei a seguir a entrevista com Valter Luciano

1) Como você se interessou por esse tema?

O interesse pela religiosidade árabe se deu devido aos constantes ataques midiáticos à Religião Islâmica, impetrados, especialmente, pela Rede Globo que, defendendo interesses europeus e estadunidenses em nosso País, tenta recriar a figura de um inimigo, também dos brasileiros, nesse caso, os seguidores do Islã, tal qual a mídia estadunidense fez com seus cidadãos. Hoje, por exemplo, é praticamente impossível ver algum jornalista dos Estados Unidos questionar as atitudes de Israel ou do Presidente Bush em relação aos árabes. Também é praticamente impossível ver a Rede Globo divulgar os verdadeiros objetivos que levaram o mundo europeu e estadunidense a recriar a campanhas das Cruzadas, dado a sua dependência aos interesses econômicos daqueles países.

2) Você faz apenas cinco citações de Dois Irmãos. Penso que existam outras que você tenha observado antes da análise, mas eu, particularmente, nunca tinha atentado para esses detalhes da história. Como você detectou esses trechos?

Quando se está estudando um tema, é claro, torna-se mais persistente a procura por detalhes que lhe auxiliem a sua análise. Isso se deu com essa pesquisa. Como eu já estava lendo o Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos, e já vinha estudando a forma de organização da sociedade árabe, ficou mais fácil perceber essas nuanças. Quanto às suas desconfianças, tens razão, existem outros momentos em que os personagens expressam essas particularidades, no caso o sepultamento do patriarca Halim. No entanto, como era apenas um trabalho dirigido para a participação no Seminário Internacional de Ciências das Religiões, tive, portanto, que seguir as regras de publicação, daí não poder me estender mais sobre o assunto.

3) A religiosidade no seio da história, na minha visão de leitor, está muito diluída. É essa mesma interpretação que você faz?

Como falei anteriormente, existe uma campanha, veiculada diretamente pela mídia, contra as gentes árabes. Essa campanha, como se pode observar, dirige-se com a finalidade de reduzir, e de forma depreciativa, a cultura árabe, notadamente, suas manifestações religiosas, onde se vê acentuar um caráter de irracionalidade, de luxúria, de crueldade, barbárie, fanatismo religioso; essas mentiras todas de que um mártir ganhará mil virgens se cumprir sua missão, etc. Um exemplo recente dessa campanha é a fala de um escritor inglês, de bastante sucesso, diga-se de passagem, Ian McEvan. Em entrevista à revista Época, no mês de junho/2007, ele declarou que a causa da violência louca dos extremistas islâmicos devia-se à repressão sexual que sofre o cidadão naquela sociedade. Assim, fica difícil, com todas essas calúnias contra o Islamismo, o leitor perceber ou entender como funciona seu código religioso. Esse código religioso dos muçulmanos está, como você bem observou, muito diluído na história, mas é porque a religiosidade muçulmana é assim mesmo, ela não existe somente dentro das mesquitas, ela se expressa, acima de tudo, na cotidianidade. Conforme você leu no artigo, um dos hadiths manda que todo muçulmano trate o outro como seu igual, e é assim que Halim, único muçulmano da história, trata a todos, de forma eqüitativa, sem diferença de cor, classe, gênero. Não existe, para o muçulmano, essa história de que o sagrado está dissociado do secular. Acho que é isso também que o mundo Ocidental não perdoa: que outros povos tenham encontrado caminhos diferenciados para galgar os cumes da autonomia total e irrestrita.

4) Você teve algum contato com Milton Hatoum sobre o trabalho? Na verdade eu quero saber se ele concorda com as análises que você faz, se ele o fez propositadamente, no intuito de discutir a questão da religião ou se os trechos aparecem no romance involuntariamente.

Olha, Valmir, acho que tem muitas coisas certinhas nesse livro. Não acredito que o Milton tenha tecido essa narrativa sem um domínio das questões religiosas. Como se disse numa recente, e também excelente, obra acerca do seu trabalho, publicado pela Ufam-UNISOL, Milton é um arquiteto. Por isso acho que essas questões foram elaboradas previamente. Há muita semelhança. De outra forma, sabemos também que nem tudo está à vontade do escritor. Agora, quanto a opinião do autor, isso não importa muito para a economia da crítica. Pois, como se diz nos escritos literários, nenhuma obra, depois de publicada, pertence ao autor, pertence agora ao público, aos críticos, que se debruçarão sobre ela, tentando esmiuçar aquilo que se encontra escondido por força do arranjo das palavras, das frases e de outros códigos discursivos.

5) Fale um pouco do seu trabalho. É uma pesquisa de mestrado? Tem financiamento da Fapeam? O material completo será publicado?

Deixa ver se eu consigo advogar em causa própria. rs… Olha meu caro, eu acho que falar sobre o Milton Hatoum tem que ser muito atrevido, isso no bom sentido. Na verdade tem que se fazer valer, pois é um escritor por demais excelente para merecer qualquer comentário. Acho que estou ficando pavuloso… Mas o que eu quero dizer é que estou ralando muito, mas muito mesmo, para ver se consigo me aproximar dessa obra, com um olhar que ela exige. Confesso…, é difícil. Dois irmãos é uma obra que se junta ao que existe de melhor na nossa tradição literária. Oxalá meu pai isso resulte num bom trabalho. Quanto às demais perguntas, eu estou estudando na Universidade Federal da Paraíba, Mestrado em Literatura Brasileira, financiado pelo Programa RH-POSGRAD, da Fapeam, – sem ele não seria possível a continuidade dos estudos, daí já meu antecipado agradecimento aos idealizadores do programa. Esse artigo, que não fará parte do meu trabalho de dissertação, já foi publicado por uma editora local, a Pindorama Records, ISBN 978857745108, juntamente com alguns outros escolhidos pela Coordenação do evento.

6) Por fim, fale da sua participação no seminário em que o trabalho foi apresentado. Qual foi a reação dos participantes? Há perspectivas de outras apresentações do trabalho?

Eu estou muito satisfeito por estudar na UFPB. É uma Universidade muito dinâmica. Esse seminário, por exemplo, foi organizado pelo pessoal da Pós-Graduação em Ciências das Religiões, – esse curso existe apenas na UFPB e na USP – e eu fiquei muito feliz porque uma das coordenadoras do evento, professora Patrícia Golddfab, pediu para que eu fizesse uma apresentação extra, em um outro grupo de trabalho, dado ao fato de os professores terem gostado do artigo e do assunto. Agora estou numa fase de pesquisa que deverá surgir mais apresentações. Já estou preparando um outro artigo, ao contrário do outro, esse fará parte da minha dissertação. Depois de pronto, acho que enviarei também para as instituições sediadas em outros Estados.

Valmir Lima – Decon/Fapeam

Deixe um novo comentário

O seu endereço de email não será publicado Campos obrigatórios são marcados *