Um olhar europeu sobre a história do Amazonas
A obra “Viagem pelo rio Amazonas”, do artista e aventureiro francês Paul Marcoy, dá ao leitor, especialmente se este for amazonense, a oportunidade de ver e pensar a si mesmo enquanto povo nativo, mesmo que em uma publicação destinada a ser um relato de aventuras no Novo Mundo para a França civilizada do século XIX. O livro cativa pela linguagem simples e empolgante, mas são as descrições e as ilustrações detalhadas dos habitantes e habitações dessas margens que dão ritmo à viagem.
A reedição da obra de Paul Marcoy foi lançada pela Editora da Universidade Federal do Amazonas (Edua), em junho deste ano, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam). O livro traz toda a carga do então mundo civilizado, no caso a França da metade do século XIX, marcada pela supremacia política e econômica da burguesia, o fim da Segunda República, a proclamação do Segundo Império por Luiz Napoleão Bonaparte, o Napoleão III, e a expansão do império francês, particularmente no sudeste asiático e no Pacífico.
Considerando essa concepção, percebe-se que o aguçado olhar europeu do autor está ao mesmo tempo reproduzindo sua idéia de civilizado enquanto representa a Amazônia como território do exótico. “Seu olhar e suas anotações de viagem não fogem da tendência que prepondera no modo de perceber e representar a Amazônia como parte integrante de uma geografia do exótico”, afirma Renan Freitas Pinto, sociólogo e diretor da Edua.
Parece evidente o propósito de Marcoy em fazer um registro detalhado da sociedade regional, mesmo que prevalecesse esse olhar “civilizado”, unindo à precisão dos detalhes a leveza e o colorido que os amantes da natureza apreciam. “Os primeiros Ticunas que encontramos me causaram péssima impressão. Mal tínhamos começado nossa viagem; eram sete da manhã e o sol estava nascendo. Os pontos mais altos da paisagem já brilhavam de luminosidade e mais embaixo tudo estava envolto numa leve neblina; os pássaros chilreavam enquanto enxugavam as penas ainda úmidas (…)”, relata Marcoy (pág.36).
Ainda sobre os primeiros Ticunas, ele diz: “A cor desses nativos lembrava a do mogno velho. Uma grande e desordenada cabeleira cobria-lhes os ombros. O homem tinha as duas bochechas decoradas com marcas de tatuagem de azul escuro (…), cujo desenho assemelhava-se um pouco às letras chinesas das caixas de chá. Ele trazia ao pescoço um colar de três ou quatro voltas, feito com dentes de macacos (…). A mulher usava um colar de contas vermelhas de vidro obtido por seu marido em transações com brasileiros”.
Esse relato corresponde perfeitamente, em toda a sua riqueza de detalhes, à ilustração desse índio avistado por Marcoy. Aliás, estas imagens são uma “viagem” à parte. Autor da introdução do livro, Antonio Porro, doutor em Ciências Sociais, esclarece que as ilustrações do francês constituem um repertório valioso da iconografia oitocentista sulamericano. “Das 626 gravuras da obra original, cerca de 80 correspondem à Amazônia brasileira e a metade delas, incluindo todas as visitas de cidades e povoado ribeirinhos e todas as de interesse etnográfico, histórico e arqueológico, acham-se reproduzidas nesta edição”, explica Antonio Porro.
Na leitura do livro, encontramos ilustrações das vilas de São Paulo de Olivença, São José de Maturá, Santo Antonio do Içá, Ega ou Tefé, Coari e Codajás. Todas estas vilas são atualmente cidades com mais de vinte mil habitantes, em constante e dinâmico desenvolvimento urbano. Marcoy também fez ilustrações dos povos indígenas: Ticuna, Cocama, Mura, Omagua e o cemitério dos Manaos.
O registro e relato do contato com os Omaguas, aliás, contribui para o trabalho que ativistas do movimento indígena tem feito para a reorganização e autodenominação desse povo que se pensava estar extinto – entretanto, há descendentes morando em Manaus. Eles habitavam a região de São Paulo de Olivença e eram conhecidos como índios “cabeça chata”
“Há muito tempo o costume de achatar a cabeça era praticado pela população indígena de São Paulo. A mãe do recém nascido, depois de acolchoar-lhe a testa com algodão, a comprimia entre pedaços de madeira, aumentando a pressão até que a criança, na idade em que aprendia a falar, já tinha a cabeça alongada, semelhante à mitra de um bispo. Esse achatamento gradativo do crânio fazia elevar o arco das sobrancelhas dando aos olhos uma notável proeminência(…)”.
É com esse certo distanciamento em que coloca os povos regionais e os modos de vida locais socialmente representados distantes do mundo civilizado que Marcoy nos remete à condição de nativo, parte de um imaginário exótico regional. De todo modo, “Viagem pelo rio Amazonas”, contribui para que o leito, nativo ou não, possa conhecer um olhar sobre a tão pouco contada história do Amazonas.